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ode a sp

dez/2014 jul/2021 aqui cresci vivi e morri algumas vezes descobri alegria, mas não escapei de uma ou outra apatia corri, ora numa tentativa de acelerar a chegada do futuro quando o presente podia estar amargo, ora numa tentativa de aproveitar os últimos momentos do presente quando ele já virava passado sp desafiou o decurso do tempo pra mim, fez alguns anos caberem em poucos meses e, paradoxalmente, me fez riscar cada dia do calendário como se um ano valesse ufa, sp, vc se livrou de mim e eu de vc, mas como diria o filósofo contemporâneo djonga, abre seu peito e vê se me escuta, eu te amo, sua filha da puta  enfim, a efemeridade

pote, pavão, relógio

dou-lhes o que já conhecem de mim frase que por repetidas vezes repeti tão familiar quanto meus jogos de palavras inúteis úteis mesmo são seu conforto pós formação uma vez inteiro conteúdo e contexto clímax resolutiva o alívio é imediato como uma panaceia de todos os males outra que da boca não me sai mas não notem os moldes os formatos que dão suporte ao que quero dizer hoje não é sobre isso é sobre o muito que de mim já conhecem e eu volto a me repetir mostro que minhas facetas em ciclos andam e se exibem a cada par de anos já aprendemos que não são meros meses há que se completar a volta ao sol umas duas vezes e aí então me reexibo como um pavão cheio de penas coloridas ou como um relógio que agora marca a hora certa levado ao conserto para aquele ponteiro errado sou isso um pote que guarda conserva às vezes acaba às vezes tá cheia ando cheia apimentada colorida sei que é cedo tal como uma conserva recém-feita pode ainda não estar boa mas já me si

17

17. É o que me diz o círculo vermelho feito à caneta em torno do número, bem no meio da folha do calendário preso à parede. O único número em destaque. Seus colegas de trás, cortados por um "x", como se nada mais valessem. Seus colegas da frente, em aberto, como nada tivessem a dizer. Corro os olhos um pouco acima e vejo o mês: outubro. Levo um susto. Como chegamos em outubro sem que eu me desse conta? Acabo de entrar no bar digerindo a informação. 17 de outubro de 2017. Até ontem estávamos em 2016, felizes pelo avanço de 2015. Calendários e relógios não deveriam ser permitidos em bares. E, por falar nisso, noto as horas. 10h. Da manhã. Terça-feira, horário de verão. O sol derretendo as calotas de gelo das pessoas em São Paulo. Ainda assim, todas continuam me parecendo um pouco frias, ou vai ver sou eu. A sensação é de que passei todo o ano em estado letárgico, sem notar o transcurso de dez meses. Na verdade, houve alguns acontecimentos ao longo do ano. Se eu juntasse cada u

Cena se cria

Rio de Janeiro dos anos 20. 20 do terceiro milênio, não vamos tão longe. Eu já trabalhava com o Sr. Cevite. Sentada à mesa ao lado da sua, eu involuntariamente ouvia todas suas conversas ao telefone, que iam como essa: "Te vi esses dias, vamos marcar um almoço, mas você engordou, hein... vai ter que comer salada." Confesso que vez ou outra eu me via encurralada entre o riso e a indignação. Em momentos mais difíceis, eu o via conter-se ao sentir que se exaltaria, dava uma resposta mais incisiva e, logo, recompunha-se para vestir novamente o manto social, enquadrar-se àquele contexto polido, ainda que com pouco jeito. A verdade é que tratava-se de um autêntico ogro, um ser sem muitos escrúpulos que, feito bicho adestrado, aprendeu a se comportar, pelo menos o mínimo para enganar a um primeiro momento. Certa feita, estávamos em uma roda de café, dessas em que alguns executivos se reúnem para dois dedos de prosa, falar dos projetos e debochar dos outros. Era o momento em

37 horas

Estamos no segundo dia. Do ocorrido faz menos que quarenta e oito horas. Este texto tem o fim como o de vários outros. Não só o fim enquanto objetivo, mas também o fim enquanto final. Vocês verão. Digo que verão porque enquanto transcrevo essas divagações, sinto que lhes transmito muito do que já conhecem de mim. Anos se passam e pessoas são substituídas, mas eu sigo sendo eu. Claro, há profundidades em mim que talvez eu ainda não conheça, mas de todos aqueles aspectos que já saltitaram antes, um por um é mantido. Todos os fragmentos de mim que me formam permanecem aqui. E aí se incluem meus erros. Estes, em forma de feito fora do parametrizado, muitas vezes tiveram um roteiro. Chego a arriscar que costumo sair de casa com esse roteiro pronto. Roteiro do erro. A verdade é que ele só leva esse nome porque traz em si algumas disparidades, mas, se querem saber, o gosto é de vida. Vida pulsante e viva. E nem preciso dizer que erraria novamente, se assim pudesse. Notem que, apesar das seme

Sapos

- Sabe que andei pensando e... bom, cheguei à conclusão de que você é como um livro do Dostoiévski. Parece interessante, cheio de palavras difíceis, se adapta bem ao frio, combina com café, traz aquela faísca de cultura, como se, apenas por estar perto, fosse me tornar, por consequência, também mais interessante. Porém, é chato pra caralho. "Como assim? Tá ficando louca? Dostoiévski! Não fale mais isso perto de ninguém. Dostoiévski, cara" É, certamente não falarei mesmo. Inclusive, na minha estante de casa tem no mínimo uns quatro livros do russo, que guardo há anos. Alguns lidos, outros intocados. O que fazemos quanto à chatice de Dostoiévski? Ignoramos, ora. Na verdade, sequer admitimos para nós mesmos. No fundo, temos em mente que Dostoiévski é muito mais interessante do que jamais poderemos ser e, claro, nos enchemos de culpa por não nos sentirmos envolvidos na trama do autor, tampouco fazer algumas concessões para gostar dele ou, ainda, cair no sono durante a leitura. L

Das Relações Interpessoais Transitórias

Sim. Transitórias. Aquelas que duram pouco e que dispomos de um arcabouço mínimo de conhecimento sobre o indivíduo contraposto (assim os chamarei), além de um tempo ínfimo para traçar nossas impressões valorativas. Tenho pra mim que o imperativo responsável por reger tais interações é o instinto. Passarei, pois, a defender o papel de importância máxima desempenhado por esta engrenagem automática e dotada de pouco reconhecimento. Comecemos do começo. Tem-se que ao primeiro contato visual compartilhado com um indivíduo contraposto é estabelecida uma comunicação rica, porém, de interpretação duvidosa. Duvidosa porque não confiamos em nós mesmos, não vamos por aquilo que nossas entranhas nos fazem sentir, tampouco por aquilo que nosso peito grita. Sempre atribuímos tais sensações às baboseiras de nossa mente e concluímos com nosso autodiagnóstico de louco. Contudo, se depositássemos crédito em nós mesmos e seguíssemos nossa intuição, acertaríamos em nossas análises muito mais do q

vida doce

shopping lotado coisa de cidade grande de pé na porta da confeitaria mais cheirosa do andar eu o espero pagar pelo bolo de nozes não temos mais pressa gosto da idade que alcançamos um riso bobo me percorre o rosto bem quando ele me olha e também começa a rir para mim somos dois bobos bobos alegres na fila do bolo de nozes

Besteira de gente grande

Noite de domingo. Sonolenta, eu ouvia sua voz ditando cada palavra daqueles textos que escreveu, enquanto eu mesma os lia antes de dormir. Sua voz doce tinha gosto dos seus lábios, que tinham gosto dos seus beijos, que, por sua vez, tinham gosto de amor. Amor que tinha cor. Cor de rosa, lilás, branco... qual era a cor daquele meu vestido? Não sei se coral ou vermelho, mas era cor que só se usa quando se ama e é amado. Ninguém transborda aquela felicidade colorida sem estar amando. Normalmente usa-se preto, no máximo cinza, bem se sabe. O amor era tão simples que parecia ser algo que se compra naquele velho mercadinho da esquina da casa dos seus avós. Mercadinho da família Silva, três irmãos e uma irmã, com uma cambada de moleque. Conhecem a gente pelo nome. Coisa que só se tem no interior. Podia-se entrar, pegar sua bala preferida e pendurar na conta, que nem nossa era. Nosso amor também não tinha conta em nosso nome. Nenhum acerto a se fazer, pois já estava tudo certo desde o primeir

Pouco, muito pouco, importa

Tudo porque eu não conhecia Jung. Ora, e daí que eu não conhecia Jung? Eu poderia muito bem conhecer. Conheci outros. Conheço outros. Conhecerei outros. E agora conheço Jung também. Eu li Freud quando ainda estava no colégio, lá pelos 15 anos de idade. E Plotino? Duvido que manje alguma coisa de Plotino, mística ou qualquer outra merda dessas que antes eu achava o máximo e hoje não passa de história pra boi dormir, pelo menos pra mim. Também conheci Descartes muito nova e, desde então, cogito, ergo sum. Sinto a náusea que Sartre fala muito antes de ter lido suas obras. Rejeitei as ideias de Kant e Spinoza. Me apaixonei por Hume, mas me tornei cética muito antes de ter conhecido sua teoria, até porque, ele tinha razão, todo conhecimento útil sobre o mundo vem através do que experimentamos pelos sentidos. Tá vendo como tanto faz tudo isso? Tanto faz quem você leu ou quem você ainda tem pra ler.   Como amante da filosofia, sempre medi as pessoas pelo número de filósofos que elas co

Contornos

Dirigia sob os leves raios de sol da manhã, no som " Should have knwon better ", um chapéu de palha, óculos escuros e roupas largas. Sem pressa, seguia pela via da direita. De vidros abertos, deixava o vento tocar seu rosto, enquanto inspirava e expirava com uma calma que experimentava de forma bem própria. Se não precisasse se atentar à estrada, fecharia os olhos para sentir melhor aquele momento. No banco de trás, algo com flores e essências, frutas e legumes com aspecto de recém colhidos de alguma horta cultivada por mãos caprichosas. O dia tinha cheiro de domingo, mas não qualquer domingo, não aquele domingo de quem vive a segunda-feira com pesar. Era um domingo de paz. A idade trouxe, além dos cabelos brancos, a sabedoria, ensinou a entender melhor a vida e aceitar os seus contornos. Pouco mudara, mas muito amadurecera. Não podia pedir por mais. Entendia, finalmente, que o amor é mesmo misterioso e, quando é vivido no presente, não é possível classificá-lo, dar nome,

Os ovos

Segunda-feira, meio dia. O sol estancava-se feito sangue no céu, enquanto o ar seco mesclava as cores do dia amarelado com a sujeira ramerrame do centro. Na escadaria da igreja principal, os mendigos se esticavam após o almoço de migalhas, uns rindo, outros agonizando. Verdadeira fotografia do cotidiano em seu mais genuíno aspecto. Desviava dos vendedores ambulantes, que se jogavam aos pedestres, tentando lhes empurrar qualquer bugiganga. Passou por uma senhora, de uns setenta e pouco anos, que lhe deu um sorriso e uma piscadela de olhos. Quis rir em retribuição à pobre velha, mas suas feições entristecidas não conseguiram demonstrar nenhuma reação. Sentiu-se mal pelo descaso que involuntariamente transmitiu.  Era de se culpar por qualquer besteira e naqueles últimos tempos vinha se culpando por tudo, desde a planta que deixou morrer na sua casa por esquecer de regar, até o jogo que não assistiu com a camisa de sempre e seu time perdeu. Nunca acreditara em sorte, mas se fosse para

Quatro

Eram quatro. Quatro estranhos entre quatro paredes. Quatro realidades distintas postas a se confrontar. Quatro interesses diversos que se encontravam em dimensões comuns, porém cruzadas, proibidas e encobertas. Já marcavam quase 8h da manhã e as primeiras impressões do domingo iam chegando de mansinho. O céu ia se abrindo num cinza frio, invadindo a sala de luz pelas janelas completamente abertas, enquanto as cortinas se balançavam com o vento. Encaravam uns aos outros e já não tinham tanto o que falar. Os defeitos de cada um haviam ficado expostos nas últimas horas, quebrando todo o frisson que a perfeição do desconhecido causa. Há cerca de uma hora antes, olhava pela janela e notava uma fotografia da cidade, marcada pelos aspectos daquele lugar e do momento, algo completamente novo. Pensava nada ter a temer, era justo que se lhe aproveitasse a vida como bem entendesse, livrando-se, posteriormente, de qualquer consequência ou remorso, coisa que não era hora de se preocupar. Além

Em síntese o que sempre me pareceu tão claro

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Sofia

Sentia pisar em nuvens. Seu caminhar nunca foi tão leve. O vento soprava a seu favor, a estação era sua preferida. Primavera. O céu estava bem azul, mas de alguma forma, o ar tinha um aspecto cor-de-rosa, talvez pelas flores de cerejeira que se espalhavam pelo percurso. Lembrou-se de Titãs, "há flores em tudo que eu vejo", e seguiu cantarolando enquanto esbanjava despretensioso charme em seus óculos escuros. Seus passos confiantes inspiravam quem a visse. Houve uma garota que por ela passou e tentou notar todos seus detalhes, talvez numa intenção de entender um pouco sobre felicidade, mas felicidade não se explica e, muito menos, inspiração. Dizem que inspiração sequer existe, não passando de um punhado de ideias desconexas que se explodem num dia de tédio, causando algumas conexões. Mas aquele não era um dia de tédio. Talvez a inspiração seja, então, um reflexo da felicidade quando alcança um patamar de independência. Quando, a despeito de qualquer infortúnio em constância,

Acasos do amor

Brincávamos de fazer amor à sombra das árvores. Víamos as folhas serem levadas pelo vento, de um lado para o outro, e falávamos sobre aquela dança. Com a ponta dos dedos indicávamos o percurso que faziam. Lá se vão e eis que para aqui sempre se volvem. Dizíamos que aquele era um reflexo do nosso caminho. Deixamos o acaso nos levar, assim como as folhas deixam o vento - comparávamos.  Seus olhos me fitavam intensamente, com certo brilho e ternura, enquanto minhas pupilas se dilatavam, em verdadeira resposta química à paixão.  - Que é o amor senão isso que temos? - O amor é saber que isso não é algo que temos. - O que quer dizer com isso? - indagou-me. - Ora, o amor é algo que nunca se tem, impróprio pra esse verbo possessivo. O amor é a plena ciência de que isso é agora e, ainda assim, não tememos. - Mas você me ama? - Claro! Tal como nunca me amará de volta. - Por que pensa assim? - Porque sei o quão de mim você não conhece e, desde já, peço desculpas. - Que históri

Preia-mar

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À deriva Como se não houvesse nada abaixo de meus pés Ou como se tudo que há pudesse me engolir sem dor Sinto o consumo do espaço em minhas dimensões Meu corpo em um equilíbrio infantil O vento forte que me derrubaria sem esforço Meus olhos se fecham consentindo Em um salto permaneço intacta Vejo que posso flutuar A virada ponta-cabeça repentina Eu sou a ponte sobre as águas turbulentas Deito-me para a maré passar.

Buraco

O dia seguia ameno, as cores frias mesclavam-se ao ar denso, deixando a sensação de estarmos vivendo mais uma tarde que não seria lembrada e, se eventualmente fosse, faríamos questão de esquecê-la novamente. Os caminhos estavam bem delineados no trilho, seguíamos feito máquinas bem programadas, personificando aquelas que a Revolução Industrial nos deixou de herança. Normal. Acostumamos a usar coleiras e já não nos sentíamos revoltados pelo puxão que, vez ou outra, poderia ser mais forte.  O descaso se estampava em nossas caras que, cansadas pelo desgosto, já não manifestavam muitas contradições. Sabíamos que os reis e rainhas do baralho eram como nossos donos – sim, fomos feitos números ao longo dos séculos sem que nos déssemos conta – e por isso, poderiam nos conduzir como bem quisessem, do contrário, padeceríamos às mazelas mundanas. De toda a multidão, às vezes um ou outro se destacava. Os curingas. E logo hão de pensar que pelo trabalho bem prestado, o que não poderia ser ma

Paródia reflexiva - Camões às avessas

A raiva é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é a mesma raiva? 

Caótica quietude

Torpor na volta para a casa. Seus sentidos estavam dopados de apatia, enquanto o ônibus se balançava barulhento. O queixo apoiado sobre as mãos demonstrava não só o descaso pelo momento, como a frustração do dia. Era o fim de uma segunda-feira tal como outra qualquer. Dia de se retomar a rotina como se ela nunca houvesse sido tocada. Ignorar que a adrenalina experimentada se fora junto das primeiras horas do domingo e se conformar com o marasmo e a monotonia contundente. O trânsito intenso não era capaz de lhe fazer mexer um músculo sequer da face, suas expressões estavam estagnadas em neutralidade. Tudo que pensava era em como aquela euforia havia ido embora, sem deixar nem um caminho para ser seguida de volta, intocável, a depender exclusivamente do acaso.  Que os dias já lhe propiciaram boas surpresas, era verdade. Mas não havia como acreditar em coincidências extremas em repetição. Já fora suficientemente espantoso que uma vez houvesse acontecido. Imagine duas. Diferenteme

Oceans and streams

My head is far far away from here. I feel like floating. I always feel like that once in a while. Like I'm laying on some water's surface, just going by the natural force, since I can't fight it back. I have no hunger, no hurry, no urges. To make it all easier I close my eyes. When I open them up, I see how far I've got. Like time has passed and I couldn't notice. Truth is... I don't really care. No matter how lost I may seem, I'll always find my way back. As a matter of fact, I usually find a way to something even better. 

Bem-vinda consciência oscilante

Rememorava traços que lhe voltavam pouco a pouco. Contra cada fragmento, relutava. Não era possível que tudo isto houvesse acontecido. Sobretudo neste curto espaço de tempo. - Qual o sentido da espera?, dizia.  - Todo, é claro.  - Se a vida é feita de segundos, por que contam em anos? Se as pessoas são tão insubstituíveis, por que existem bilhões? Se somos um só, por que sinto que já fui várias?  - Irrelevante, por óbvio. Cada passo traz o peso que merece e cada olhar, o reflexo que ignoramos para encobrir qualquer desgosto. De todos, apenas um. Mas num agora muito turvo para se dizer até quando se fará permanecer. Em verdade, todo agora é assim. Os fatos são como fotografias a serem reveladas, bem se sabe.  Enquanto me ouvia, torcia o nariz. Os sentidos eram reinterpretados como queria, o que tentei evitar: "Não era você que acreditava que os atos da vida se concatenavam?", indaguei.  - Sim, mas temo tê-los desconcatenado por minha conta.  - Acalme-se. Se para

Epifania

Numa decisão robusta, largou tudo que tinha nas mãos e reconheceu a desnecessidade daquilo que vinha segurando. Subitamente havia ficado tão claro. Os questionamentos que tanto lhe rebatiam, já lhe pareciam bestas olhados de agora. Como pôde por tanto tempo se arrastar naquela disforia? Lembrava de sua mãe repetindo, "isso é querer acreditar em papai noel, minha filha". Um riso lhe percorreu sutilmente a boca. Logo sua mãe lhe alertando da absurdez de se crer em contos surreais nesta altura da vida. O tempo já não estava mais para as fábulas. Era como se houvesse sido socada na cara pelos pulsos da realidade, que toma tamanho e forma para recobrar a consciência daqueles que flutuam para muito além do chão. O cuidado que o tema exigia já se perdia e, lentamente, tornava-se chacota, da qual ela mesma costumava rir. E claro, antes mesmo rir do que chorar. As expectativas viraram pó e, quanto a isso, conformou-se. Difícil mesmo era jogar o pó fora, sacodir o tapete da vida pela j

Lenta queda da vida

Quando me mudei, pensei que a cidade iria encher minha cabeça com tanta novidade que eu mal conseguiria colocar em textos todas as ideias. Mas não. Dois anos aqui e esses são os primeiros parágrafos mal programados e sem muito conteúdo que me saem. Talvez devido ao marasmo que os dias se tornaram, não sei. Especulo que sim. Mas há quem entenda que toda especulação é fadada a falhar. Pode ser. Naquela noite preferi dormir, é verdade. E naquela outra, acabei me embebedando novamente. Fato é que a liberdade está me deixando confuso. Tanto mundo pra explorar sozinho. Tanto tempo pra desfrutar. Tanta vida só minha e de mais ninguém. Parece um muito de tanto que vou deixando pra usar depois, já que há essa abundância. Ocorre que o que abunda prejudica, ao contrário do que alguns juízes que conheci diziam. Pessoas gostam do pro... Como é mesmo aquela palavra? Algo no sentido de estender o texto. Pensei em prolapso, mas vi que não, não mesmo. Minha cabeça tem ficado confusa, digitei &

Memórias

Bullshit. A primeira palavra que me vem à mente quando penso no ser humano. Risos. Engraçados nas próprias medidas. Uns transparecem a comédia. Outros a escondem dando margem à descoberta tardia. Triste, no fim das contas. Todos pequenos, mínimos como podem ser. Atrofiados sem saber. Presos aos passos dados. Ninguém se lembra diariamente da própria limitação. Dão espaço à vida ilusória quando se esquecem que os caminhos percorridos criam vínculos que pra sempre estarão lá. Vivos ou mortos. Por vezes busquei inspiração nas melhores extensões vividas, não me trazendo nada além da folha em branco. É o ódio vestido de resiliência que faz o coração falar. A vida segue. Não restam vítimas, a não ser que assim se coloquem e optem por permanecer. Quem não gosta da fantasia inventada? Da mentira bem contada? Todos revesam lugar na plateia e no palco. Ora apontam, ora são apontados. Não cabe sentimentalização dos ressentidos. Simplesmente não há espaço. É drama pra se suprimir. Na contagem do

Esquivas

Se muito falei, agora pouco me resta. Sei daquilo que não conheço. Memórias nunca tive. Esperança, quiçá. Talvez só me reste mesmo o presente, numa agonia de estar preso a um nome que não lhe faz jus. Presente mesmo seria ter o passado e o futuro. Fazer da vida alguma história. Mas, nada. Nada cabe ao que na mente desmancha o passo dado, nem tampouco ao que em pensamento se esquiva de olhar adiante e se posicionar, seja qual for a direção.

Café Frio

E eu continuava a observá-la. Sempre nos mesmos horários. Era incrível sua pontualidade. Houve um dia que me atrasei por cinco minutos para alcançar a janela e, quando cheguei, ela já não mais estava lá desfilando graciosa. Hesitei por algum tempo, pensando que ainda pudesse passar, mas era tarde demais. Às sete horas, nem um minuto a mais, nem um a menos, e lá se ia minha bela junto com o frescor da manhã em sentido leste. Voltava ao entardecer, retomando, imagino, o caminho de casa, sentido oeste. Eu me culpava, me castigava e chegava adiantado no dia seguinte se deixasse de vê-la um dia sequer por ter bebido demais e acordado horas depois. Talvez devido ao ambiente sombrio e sem graça que se tornara meu apartamento é que necessitasse tanto daquela beleza colorida de Manuela. Os cômodos vazios, a lâmpada queimada da sala há dois meses sem trocar, a falta de vizinhos no meu andar, o porta-retrato com a antiga foto de Laura segurando as crianças naquela nossa última viagem seis anos

Brincava com a verdade, num estímulo de quem não sabe sorrir de forma natural. Achava do destino um tolo, enxergava a todos como máquinas fadadas à ferrugem. Quem sabe uma forma nova não se assumiria se trocassem sua engrenagem,  fosse feita alguma reposição de peças, entendido melhor seu manual? Ninguém sabe. E também não quiseram saber. Já completava a quadragésima década e, até então, não via sentido em nada. Produto de consumo do tempo, era capaz de perceber apenas o decurso de anos, ignorava os dias, semanas e meses. A tosse constante e a náusea eventual lhe lembravam de sua condição humana. O terno padrão como o de vários outros lhe deixava ainda mais longe de si, desafiando se havia alguém ali dentro. Quis parar com essa brincadeira. Usou a forma que julgou menos gravosa. Não conseguiu, acordando e se frustrando ao ter os olhos abertos, além dos entediantes dias no hospital para desintoxicação. Falha a tentativa de romper com a própria vida, sentiu ira por estar em um mundo ond

Tarde de verão

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Quinta-feira de dezembro. O sol já deixava sua ardência para o anúncio de que em breve iria se pôr. Acordei atordoada notando que os sonhos bons do cochilo após o almoço haviam se estendido de forma a quase impedir que eu cumprisse com o combinado. Em um salto, me levantei, lavei o rosto, vesti algumas roupas, peguei as chaves do apartamento e saí correndo pelas ruas, desviando das pessoas que consegui e dando algumas esbarradas em sujeitos de bem que me olhavam indagando-se se eu havia roubado alguém para justificar a pressa. Não havia. Apenas tinha a intenção de chegar até o farol antes do pôr-do-sol. No Recife, se o relógio mostrasse mais que 16h30, já se poderia desapertar o passo e se contentar com o do dia seguinte, o sol não espera. E Miguel disse que também não esperaria. Era a última chance que daria a nós dois. Lembrava disso e corria ainda mais. Com o trânsito do horário, era incogitável usar qualquer outro meio que não fosse os pés. Até a ciclovia ficava lotada, em razão d

Da mantença para mudança

Seis horas. Com sede de viver, tratou de se levantar. A manhã de julho cujo frio era prazeroso exigia que, para seu desfrute, o ar pudesse tocar a pele. Arrancou a camisa e abriu a porta da cozinha a fim de sentir o frescor do vento, aproveitava para notar como era bom não conter suas vontades temendo ser lembrado de que poderia se resfriar ou algo besta assim. Renovado após aquela noite, quis preparar o café. Passara anos escapando de casa logo cedo e acabando por se sujeitar a tomar aquele meia boca da padaria, pago com moedas que lhe pesavam no fim do mês. Agora sentia o cheiro de uma bebida forte, recém preparada. A despeito de estar sozinho, brindou consigo mesmo. Era fácil notar o efeito que lhe causara aquela mudança. Sempre tão seguro e estável, era novo ter os pés fora do chão e algumas incertezas no peito que pouco lhe incomodavam. Queria explorar ainda mais aquilo que sentia, trazer à tona as faíscas que lhe explodiam por dentro, virar-se do avesso. O riso no canto da b